O eventual impeachment do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) cumpriria o objetivo imediato de seus opositores para tirá-lo do poder, mas dificilmente resultaria na sua exclusão da eleição do ano que vem.
Em outras palavras, Bolsonaro, mesmo na hipótese de ser cassado pelo Congresso, poderia estar de volta ao cenário político pouco tempo depois, tentando retornar à Presidência pelo voto.
Ironicamente, esse cenário é decorrência de uma manobra patrocinada cinco anos atrás por alguns dos principais desafetos do atual presidente: o PT, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), atual relator da CPI da Covid, e o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Ricardo Lewandowski.
Em 31 de agosto de 2016, durante o julgamento do impeachment de Dilma Rousseff pelo Senado, uma articulação de última hora poupou a então presidente de perder os direitos políticos por oito anos, como prevê o artigo 52 da Constituição.
Lewandowski, que presidia a sessão, aceitou destaque apresentado pelo PT e defendido em plenário por Renan, e promoveu duas votações separadas.
O impeachment foi aprovado com quórum qualificado, mas a inelegibilidade, não, um procedimento que foi amplamente criticado no meio jurídico.
Na época, pesaram os argumentos de que Dilma estava sendo injustiçada, que era pessoalmente incorruptível e que a perda de direitos políticos era uma pena exagerada.
“No Nordeste, costumam dizer uma coisa: ‘Além da queda, coice’. Não podemos deixar de julgar, mas não podemos ser maus, desumanos”, discursou Renan na sessão.
A petista acabou sendo liberada para disputar cargos públicos, e chegou a se candidatar na eleição de 2018 para o Senado por Minas Gerais, mas não se elegeu.
Agora, afirmam especialistas em direito ouvidos pela Folha, será inevitável que Bolsonaro invoque esse precedente caso sofra impeachment.
“É um precedente. A meu ver não tem base na Constituição, mas é um precedente. O Senado entendeu na época que era possível interpretar o texto constitucional dessa forma”, diz o diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto.
A discordância quanto à interpretação feita no impeachment de Dilma é compartilhada por Eloisa Machado, professora de direito da Fundação Getulio Vargas.
“A Constituição claramente diz que é perda do cargo com inabilitação da perda da função pública por oito anos. Estamos falando de um pacote”, afirma.
O texto constitucional diz que a condenação à perda do cargo ocorre “com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”.
O chamado “fatiamento” do artigo 52, que resultou na preservação dos direitos da petista, não significa, no entanto, que isso se aplicaria automaticamente a Bolsonaro, afirmam os especialistas.
“O precedente que se criou é que cabe apresentar destaque para este tema. A partir daí, o Senado é quem deverá decidir se dá o mesmo tratamento a Bolsonaro”, afirma Machado.
Marques Neto concorda: “Juridicamente, vale o precedente para ter a questão [do fatiamento] apreciada. Politicamente, o Senado decide”, afirma.
Ou seja, na sessão do impeachment, seria necessário que um senador aliado de Bolsonaro –seu filho Flávio, por exemplo— levantasse essa questão, usando como argumento o ocorrido com Dilma.
Se o Senado mesmo assim mantivesse a inelegibilidade de Bolsonaro, caberia um recurso ao STF, com a justificativa de obter tratamento igual ao dispensado à petista.
Marques Neto, no entanto, vê com ceticismo a possibilidade de o Supremo interferir em uma decisão interna dos senadores. “O Supremo provavelmente decidiria com base no que está escrito na Constituição, que prevê também a pena acessória [perda dos direitos].”
Para aprovar o impeachment, é necessário apoio de 54 dos 81 senadores. O afastamento de Dilma contou com 61 votos, mas a decisão sobre a perda de direitos políticos teve apenas 42.
Para Modesto Carvalhosa, professor aposentado da USP, Bolsonaro tem um argumento fortíssimo para não ter seus direitos políticos cassados em caso de impeachment.
“O Lewandowski, ao fazer isso como presidente do STF na ocasião, criou o precedente na hora. E o STF nunca modificou essa decisão. Portanto, tornou-se um precedente do presidente do tribunal, que implicitamente foi ratificado pelo próprio tribunal”, afirma.
Após o impeachment ter sido aprovado, o PSDB chegou a entrar com mandado de segurança contra o desmembramento das votações, mas acabou retirando-o, com receio de que o STF anulasse toda a sessão do impeachment. Assim, a corte nunca se debruçou sobre o tema.
“Foi uma decisão péssima. Atos irresponsáveis têm consequências, e a consequência é a evidente e óbvia arguição de precedente pelo Bolsonaro”, afirma Carvalhosa.
Secretário-geral do Senado na época do impeachment de Dilma, Luiz Fernando Bandeira de Mello diz que o chamado “fatiamento” na verdade já havia sido aplicado no caso da cassação de Fernando Collor, em 1992.
“Prova disso é que a cassação dos direitos políticos ocorreu mesmo após Collor ter renunciado”, afirma Bandeira de Mello.
Segundo ele, a própria forma como o artigo 52 está redigido, mencionando que a condenação “limita-se” a cassação e perda dos direitos políticos, abre espaço para que a pena seja reduzida. “Esse é o limite máximo da pena, que pode ser menor”, afirma.
Para Bandeira de Mello, atualmente membro do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), o próprio presidente do STF, Luiz Fux, que teria a tarefa de comandar um eventual julgamento do impeachment de Bolsonaro, poderia já de saída estabelecer que seriam duas votações separadas. “Caso isso não aconteça, basta alguém apresentar um destaque”, diz.
Toda essa discussão, afirma o professor de direito constitucional Pedro Serrano, apenas reforça que o impeachment é um processo híbrido, com um componente jurídico e outro político.
“No caso da Dilma, foi uma forma de amenizar a quebra de institucionalidade grave ocorrida com aquele impeachment sem base factual. O Parlamento tem o poder de se negar a aplicar a sanção [de oito anos], por isso bipartiu o artigo da Constituição. Se ele tem o poder de fazer mais, então também tem o poder de fazer menos”, afirma Serrano, professor da PUC-SP.
Para ele, a decisão sobre aplicar a pena de inelegibilidade a Bolsonaro dependerá de uma avaliação da gravidade do seu crime de responsabilidade.
“Ninguém duvida que um genocídio é muito mais grave do que uma pedalada fiscal. É uma decisão moral. Por isso que é um processo jurídico e político”, afirma Serrano, que considera a gestão de Bolsonaro na pandemia o único caso claramente passível de impeachment desde a redemocratização.
Esta deve ser a linha que seguirá o PT, que apresentou o destaque pró-Dilma em 2016, caso o tema se apresente.
“Prevaleceu muito naquele momento um componente compensatório para a Dilma. Isso é muito difícil com Bolsonaro, porque ele cometeu dezenas de crimes de responsabilidade. Não precisa chamar ninguém do Tribunal de Contas para inventar uma pedalada fiscal”, afirma o senador Humberto Costa (PT-PE).
Paralelamente à tentativa da oposição de se iniciar um processo de impeachment contra Bolsonaro, há ainda inquéritos abertos no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que podem levar à cassação da chapa eleita em 2018, incluindo o vice, Hamilton Mourão.
Um deles investiga o disparo de mensagens pelo WhatsApp por empresários na campanha passada, conforme revelado pela Folha.
Além disso, o TSE também abriu na semana passada inquérito em razão dos ataques do presidente ao sistema de urnas eletrônicas. Na hipótese de cassação pela Justiça Eleitoral, Bolsonaro e Mourão se tornariam inelegíveis por oito anos.