O primeiro acordo de delação premiada feito por uma desembargadora no país descreve o que, segundo ela, seria um órgão dentro do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) “com o objetivo de coagir e pressionar” quem não aderisse a um suposto esquema que envolvia venda de decisões judiciais.
A colaboração foi feita em meio à Operação Faroeste, tocada pela Polícia Federal e pela Procuradoria-Geral da República, que investiga as suspeitas sobre vendas de decisões judiciais no país desde 2019 e já levou à prisão desembargadores, juízes e advogados.
Segundo os colaboradores, o órgão do TJ-BA que servia para coação era o Gabinete de Segurança Institucional, braço da estrutura do tribunal que, com ajuda da chefia da Secretaria de Segurança Pública da Bahia.
A delação proposta pela desembargadora Sandra Inês Rusciolelli e por seu filho, Vasco Rusciolelli, foi validada pelo ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Og Fernandes, relator da Faroeste, em junho.
Eles haviam sido presos em março do ano passado, após uma ação controlada da Polícia Federal conseguir registros de Vasco recebendo R$ 250 mil. Mãe e filho foram denunciados sob acusação da prática dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro e de integrar organização criminosa.
A denúncia ainda não foi aceita e o processo está suspenso a pedido do Ministério Público.
Os colaboradores dizem que esse modo de atuação foi desenvolvido pelo ex-presidente da corte baiana Gesivaldo Britto, com participação direta do ex-secretário de Segurança Pública da Bahia Maurício Teles Barbosa.
Ambos têm negado ter cometido qualquer irregularidade. O advogado de Barbosa, Sérgio Habib, diz que o ex-secretário não integrava organização criminosa e só instaurava inquéritos quando era solicitado, e nunca de ofício (ou seja, nunca sem provocação externa).
Já a defesa de Gesivaldo diz que não se posicionará porque não teve acesso à integralidade da delação e de outros documentos.
Gesivaldo é apontado pela PGR como aliado do grupo do empresário Adailton Maturino, que se apresentava como cônsul da Guiné Bissau embora não tivesse autorização do Itamaraty para exercer o cargo. Ficou conhecido como “falso cônsul”.
Maturino, que está preso preventivamente desde 2019, tinha interesse em decisões relacionadas a terras no oeste da Bahia.
Já Maurício Teles Barbosa é delegado da Polícia Federal e chefiou a Secretaria da Segurança Pública baiana nas gestões de Jaques Wagner e do atual governador, Rui Costa, ambos do PT. Ele deixou o cargo em dezembro do ano passado, após virar alvo de busca e apreensão pela Faroeste.
O delegado também é apontado pelos investigadores como alguém que atuava pelo grupo do “falso cônsul”. Na delação, é dito que ele tinha participação direta no Gabinete, que servia como “braço armado e instrumento de coação e coerção contra quem contrariasse os interesses da Orcrim [organização criminosa]”.
No início de julho, a PGR apresentou uma denúncia que acusa Gesivaldo e Barbosa, entre outras pessoas, de integrarem organização criminosa. O ex-presidente do TJ-BA também foi denunciado sob acusação da prática dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.
Na delação, a desembargadora Sandra Inês afirma que sofria retaliações para dar decisões a favor do grupo de Gesivaldo. Segundo a magistrada, foi forjado um processo contra ela, sob a suspeita de prática do crime de “rachadinha” –devolução do salário de funcionário de gabinetes.
Os colaboradores citam como exemplo de pressão um suposto episódio em que o advogado de Barbosa telefona para o então secretário na presença da delatora, com o celular no viva-voz.
Na ligação, Barbosa teria afirmado que Gesivaldo e um assessor “cobravam diariamente” a solução de um inquérito contra ela.
Procurado, o advogado de Sandra Inês, Pedro Henrique Duarte, afirma que o procedimento sobre suposta “rachadinha” foi arquivado e foi feito em meio a perseguições que a desembargadora sofria.
Não é só na delação que ela cita o ex-secretário de segurança. O advogado Júlio Cesar Cavalcanti, que se tornou o primeiro delator da Faroeste, gravou conversas que teve com a desembargadora antes de ela ser presa.
Em uma ocasião, ela diz que o então secretário Barbosa “é daquele que faz a ‘grampologia’ todinha”. “E depois faz chantagem com as pessoas”, afirma Sandra Inês.
A denúncia, assinada pela subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo, diz que Barbosa tinha controle absoluto de investigações da Secretaria da Segurança Pública para garantir impunidade ao grupo de Adailton Maturino.
Depois da fase da operação que teve o secretário como alvo, em dezembro passado, a PGR aponta que o Sindicato dos Delegados de Polícia da Bahia divulgou comunicado “alegando que, desde 2011, Maurício Barbosa controla todas as investigações criminais sigilosas produzidas pela Polícia Civil da Bahia, bem como suas operações”.
Ele agia, segundo a nota do sindicato, “com antecipação de investigações, manipulação de dados obtidos no bojo de interceptação telefônica, conhecimento prévio de quebra de sigilo bancário e fiscal, com situações de vazamento desses conteúdos”.
Para apontar possível proximidade entre o Gabinete de Segurança Institucional do TJ-BA e Maurício Barbosa, a denúncia diz que o então chefe do órgão, um coronel da PM, foi exonerado quando Gesivaldo Britto saiu da presidência e, no mesmo dia, colocado para atuar em um cargo vinculado à chefia da Secretaria de Segurança Pública.
Em outro momento, um celular apreendido na operação aponta mensagens que mostram suposto monitoramento da circulação de adversário de Adailton Maturino dentro do TJ.
Procurado, Sérgio Habib, advogado de Maurício Teles Barbosa, afirma que seu cliente “não tem nada a ver e não tem nenhum envolvimento com a Operação Faroeste”. “Eles estão criando essa situação como uma forma de incriminar Maurício e isso vai ser provado dentro do processo”, afirma.
“Maurício, como secretário de Segurança, recebia os ofícios e tinha que instaurar os inquéritos, se ele não instaurasse cairia em prevaricação. Não tem crime. Ele tinha que instaurar os inquéritos”, diz Habib. “Sempre tinha provocação. Ele nunca agiu de ofício”.
“Não há esse Gabinete de Segurança Institucional, isso nunca existiu. Não há uma organização criminosa”, afirma. De acordo com Habib, o sindicato produziu aquela nota porque Maurício Barbosa “tinha uma relação meio conflituosa com a associação dos delegados”.
“O sindicato tinha uma política contrária e Maurício foi muito perseguido pelo grupo do sindicato. Tinham uma certa divergência”, afirmou. Ele acrescenta que o Ministério Público também participava das investigações.
O advogado de Gesivaldo Britto, Adriano Figueiredo, afirma em nota que não se posicionará no momento, “considerando que não foi obtido acesso à integralidade dos elementos de informação” mencionados na ação penal, como os acordos de colaboração premiada, e também porque não “houve ainda manifestação defensiva nos correlatos autos”.
A colaboração de Sandra Inês e de Vasco tem 39 anexos ao todo. Entre os citados estão 12 desembargadores (incluindo uma aposentada) do TJ-BA e 12 juízes. Três desses desembargadores ainda não haviam sido citados anteriormente na investigação.
Além disso, são mencionados 15 advogados e 16 funcionários do TJ-BA. Há ainda mais de uma dezena de filhos e parentes de magistrados e de investigados que participaram, segundo a delação, de alguma das situações relatadas na colaboração.
Os delatores também citam ao menos um político com mandato no Congresso e empresários. Atualmente, ambos estão em prisão domiciliar em Salvador.
Desde o início da Faroeste, cuja primeira fase foi em novembro de 2019, outras três desembargadoras além de Sandra Inês foram presas preventivamente: a ex-presidente do TJ-BA Maria do Socorro Barreto Santiago e as magistradas Ilona Reis e Ligia Cunha. As três foram soltas, mas estão afastadas das suas atividades no tribunal e usam tornozeleira eletrônica.