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29 de maio de 2023
Brasil

Junho de 2013 produz década de reviravoltas com choques para esquerda e direita

Joelmir Tavares/Folhapress

A ida de milhares de brasileiros às ruas em junho de 2013 inaugurou uma década de reviravoltas sociais e políticas, que incluiu um impeachment, a ascensão da direita radical após um ciclo de governos de esquerda, a primeira prisão de um ex-presidente da República depois de condenação criminal e sua nova eleição ao comando do país.

Dez anos mais tarde, as manifestações “contra tudo” que abalaram o Brasil, emparedando a classe política e soterrando em dúvidas uma Copa do Mundo, são um assunto inconcluso para a vida nacional e um enigma a ser inteiramente desvendado por historiadores e acadêmicos.

Os protestos tímidos em 6 de junho na capital paulista contra o aumento das passagens do transporte público se transformaram velozmente em atos com pautas difusas, sem ligação com a causa inicial, a redução da tarifa, e que se espalharam pelo país.

Pautas liberais e reacionárias foram adicionadas, num caldeirão que incluía queixas sobre o desequilíbrio entre o peso dos impostos e a qualidade dos serviços públicos, ataques aos gastos com o torneio de futebol prestes a ocorrer no país-símbolo do esporte e demandas por golpe militar.

As quatro semanas de convulsão foram conectadas a uma onda global de revoltas antissistema igualmente convocadas pelas então incipientes redes sociais.

Na esteira da crise econômica de 2008, Facebook e Twitter foram usados para articular movimentos como a Primavera Árabe, os “indignados” na Espanha e o Occupy Wall Street nos EUA.

Cenas de depredação praticada por black blocs, violência policial, conflitos entre os próprios manifestantes, tentativas de reação governamental e estupefação geral marcaram o caso brasileiro. De lá para cá, as ruas viraram personagem de um país que ainda convive com as mazelas apontadas em 2013.

Ponta de um novelo que continua a ser puxado, as chamadas jornadas de junho são vistas por uma corrente de pesquisadores da sociologia e da ciência política, além de uma parcela dos líderes partidários e de movimentos sociais, como uma espécie de nó seminal dos anos de crise.

Sob essa ótica, há um fio condutor que passa pela derrubada de Dilma Rousseff (PT), o apoio à Operação Lava Jato, a prisão de Lula (PT) —hoje presidente de novo—, a eleição de Jair Bolsonaro (PL) e os ataques golpistas de bolsonaristas contra as sedes dos três Poderes em 8 de janeiro deste ano.

Pela série de reveses que impôs à esquerda, especialmente ao PT, há quem veja junho como origem de uma herança maldita, que legou ao país retrocessos democráticos evidenciados nos recém-encerrados anos Bolsonaro (2019-2022).

Essa interpretação coexiste com a constatação de que o campo da direita foi catapultado para outro patamar no debate público nacional. O impacto é visível no quadro de eleitos para o Executivo e o Legislativo, não só por discussões eclodidas naquele ano, mas sobretudo pelos capítulos seguintes.

“Uma visão compreensiva de junho, sem resvalar em simplificações, tem que reconhecer que aquilo surgiu também pelos limites do projeto de esquerda que estava no poder. As origens eram legítimas”, diz o presidente nacional do PSOL, Juliano Medeiros, também historiador e cientista político.

“Não vejo ali só o ovo da serpente, como pensa uma parte da esquerda que não quer fazer um acerto de contas com a sua própria história. O germe também estava ali, mas havia outros elementos. É um fenômeno mais complexo, que incluiu baixa qualidade dos serviços e ausência de reformas estruturais”.

Para Medeiros, no entanto, o campo mais castigado por 2013 foi “a velha direita de punhos de seda”, simbolizada pelo PSDB, com a substituição por uma nova direita.

O partido Novo, que àquela altura coletava assinaturas de apoiadores para ser oficializado, foi beneficiado pelo clima de descontentamento com o establishment, como conta o empresário João Amoêdo, que ajudou a fundar a legenda pela qual concorreu em 2018 à Presidência e se desfiliou em 2022.

“Aproveitamos o fato de as pessoas estarem mais atentas à política para divulgarmos as ideias do Novo, que já se levantava contra a realidade de pagar muitos impostos e ter pouco retorno do Estado”, diz ele, que vê as instituições mais enfraquecidas do que há dez anos, ao contrário do que esperava.

Em oposição à verve de esquerda do MPL (Movimento Passe Livre), que chamou as primeiras marchas de junho, setores da direita inspirados pelo ímpeto das massas e pelo sentimento difuso de indignação se aglutinaram a partir de 2014.

Dali surgiram grupos como MBL (Movimento Brasil Livre) e Vem Pra Rua, agitadores das bem-sucedidas passeatas pró-impeachment.

“A gente [da direita] passou a existir depois de 2013”, diz Kim Kataguiri (União Brasil-SP), um dos fundadores do MBL e deputado federal em segundo mandato.

Na visão do parlamentar, a direita ainda era estigmatizada como esteio da ditadura militar (1964-1985), mas foi “descriminalizada” após junho. “E acabou capitaneando esse processo porque a insatisfação geral era com o governo [do PT]. A Dilma foi uma das maiores formadoras de liberais no Brasil”, ironiza.

Fragilizada pelas investigações da Lava Jato contra seu partido, a então presidente sucumbiu, abrindo espaço para seu então vice, Michel Temer (MDB). Ao assumir o cargo, ele propiciou uma guinada à direita responsável por pavimentar a chegada ao Planalto de Bolsonaro e suas visões radicais.

As interpretações têm nuances conforme cada ponto de vista —a variedade de análises comporta inclusive a leitura de certo grau de independência entre os fatos pós-2013. Mas é consenso que o brasileiro ficou mais envolvido com a política a partir dali e que o sistema balançou.

“Foram vários ‘junhos de 2013’, com movimentações em vários lugares e etapas muito diferentes”, diz Luis Felipe Miguel, professor de ciência política da UnB (Universidade de Brasília).

Para ele, o desenrolar evidenciou um questionamento do governo Dilma e das políticas do PT feito pela esquerda. Na sequência, a direita se apropriou do momento explorando o combate à corrupção para mobilizar a classe média e com “um discurso francamente reacionário com a ideia de recuperação do Brasil”, afirma.

“A questão seguinte era ver quem tinha capacidade de construir um significado para manifestações tão heterogêneas. E os setores de oposição ao petismo tiveram muito mais habilidade, pela sua presença nos meios de comunicação de massa e pela desenvoltura nas redes sociais”, diz Miguel.

ESQUERDA MINIMIZA SEQUÊNCIA DE DERROTAS

Numa chave menos pessimista, representantes da esquerda minimizam a sequência de derrotas e recorrem ao argumento de que a necessidade de resistir às medidas implementadas por Temer e Bolsonaro reaglutinou o campo oposicionista, o que contribuiu em 2022 para a vitória de Lula.

As explicações mais realistas embutem autocríticas sobre as causas do levante, como o encastelamento dos detentores do poder àquela altura e a consequente perda de conexão com as bases populares, somados à acomodação de movimentos sociais conciliados com o governo central.

“Os movimentos de direita conseguiram capitalizar o momento, e a esquerda perdeu o controle”, diz a cientista política Vera Chaia.

“A polarização que se estabeleceu nas próprias manifestações e se espraiou na sociedade é ainda hoje um resquício de 2013, mas também uniu setores democráticos na quadra recente”, segue a professora da PUC-SP, para quem a força da sociedade civil é maior agora do que uma década atrás.

O legado central é o de que a mobilização popular passou a ser vista como elemento capaz de interferir na institucionalidade. Ao mesmo tempo, 2013 sacudiu a juventude que cresceu sob os anos de transição pacífica entre governos do PSDB e do PT para um engajamento político mais ativo.

Para quem busca enxergar o copo meio cheio, há ainda o consolo de que a representatividade de camadas mais estigmatizadas e pobres ganhou impulso ao longo da década, em sintonia com o despertar de segmentos como mulheres, negros e LGBTQIA+ para o ativismo e a luta política.

À direita, a celebração de que junho abriu portas para o que é descrito como quebra de hegemonia da esquerda aparece ao lado de apelos para dissociar a defesa do liberalismo e do conservadorismo da agenda autoritária e golpista instigada por Bolsonaro e seguidores extremistas.

O apelo pela diferenciação entre posturas democráticas e antidemocráticas é uma tentativa de responder às críticas sobre o surgimento de uma retórica antipolítica a partir das mobilizações de 2013. O mote “sem partido” era gritado nas ruas para repelir a instrumentalização das passeatas por legendas.

Vozes mais moderadas do lado destro apregoam o aumento de sua influência como resultado de uma demanda espontânea e crescente do eleitorado por posições antiesquerda. No ano passado, a eleição de Lula —apenas 1,8 ponto percentual à frente de Bolsonaro— contrastou com a formação de um Congresso majoritariamente conservador, o que tem prejudicado o atual governo.

OS PASSOS DE JUNHO DE 2013

Aumento das tarifas e ‘Revolta do Busão’ (ago.12 a mai.13)
Antes dos protestos de junho de 2013, algumas capitais registraram manifestações contra as altas das tarifas de transporte, como Natal, com o movimento “Revolta do Busão”, Rio de Janeiro, com o “Fórum de Lutas contra o Aumento das Passagens”, e Porto Alegre, com a criação da “Frente Contra o Aumento”

20 centavos e Passe Livre em SP (6.jun.13)
Inspirados em Porto Alegre, o Movimento Passe Livre promove ato contra o aumento da tarifa de R$ 3 para R$ 3,20 em São Paulo, reunindo inicialmente cerca de 2.000 manifestantes. A presença de black blocs e a truculência da PM ampliaram a repercussão dos atos

Não vai ter Copa? (15.jun.13)
No dia da abertura da Copa das Confederações, em Brasília, houve ato contra os gastos para a Copa do Mundo de 2014. Os protestos passam a perder a marca de serem apenas contra os reajustes das tarifas. Cidades como São Paulo e Rio de Janeiro registram manifestações com amplo confronto entre policiais e manifestantes

Revogação dos aumentos (19.jun.13)
Após a sequência de manifestações ocorridas em SP e no Rio, ambos os governos anunciam, no mesmo dia, a revogação do aumento das tarifas de transporte público. As iniciativas, porém, não foram suficientes para esvaziar os atos, agora com pautas mais difusas

“O gigante acordou” (20.jun.13)
O ápice das jornadas de junho foi atingido no dia 20, quando mais de 1,2 milhão de pessoas, segundo estimativas policiais, se juntaram em mais de cem cidades brasileiras. A maioria das passeatas foi pacífica, mas houve confrontos com a polícia em várias cidades, como Rio, Brasília e São Paulo

Pronunciamento de Dilma (21.jun.13)
Após o maior dia de manifestações do mês, a então presidente Dilma Rousseff fez um pronunciamento de cerca de dez minutos, prometendo conversar com prefeitos e governadores para a criação de um pacto para melhoria dos serviços públicos. Ela disse ser favorável às reivindicações e protestos, mas criticou o vandalismo

Pactos nacionais e propostas (24.jun.13)
Após reuniões com governadores e prefeitos, Dilma apresentou cinco pactos para o país. Foram abordadas a manutenção da responsabilidade fiscal, investimentos em saúde, aumento dos gastos em transporte público, valorização da educação e reforma política

Movimentos perdem fôlego, Brasil campeão (30.jun.13)
Neste momento de junho, os protestos já tinham perdido força. A seleção brasileira venceu a Espanha por 3 a 0 e tornou-se tetracampeã da Copa das Confederações, no Maracanã. Do lado de fora do estádio, houve tumulto de um ato que se iniciou na Tijuca, na zona norte do Rio.